Por Andressa Besseler, da Envolverde
“O Aborto dos Outros” é um filme sobre maternidade, afetividade, intolerância e solidão. A narrativa percorre situações de abortos realizados em hospitais públicos - previstos em lei ou autorizados judicialmente - e situações de abortos clandestinos. O filme mostra os efeitos perversos da criminalização para as mulheres e aponta a necessidade de revisão da lei brasileira.
Após três anos de pesquisas, a diretora Carla Gallo reuniu uma equipe para documentar por um período de cinco meses o drama de inúmeras mulheres que estavam prestes a interromper sua gravidez. Estas interrupções, autorizadas pela lei, enquadram-se nas únicas situações permitidas pelo Código Penal brasileiro: casos de estupro ou risco de vida para a mãe. Existe ainda uma terceira situação, eventualmente autorizada judicialmente, que diz respeito às gestações em que uma má formação do feto compromete a sua sobrevivência fora do útero da mãe.
Estreante na direção de longas-metragens, Carla Gallo registrou ainda depoimentos de outras mulheres que recorreram ao aborto clandestino, além de profissionais da área da saúde, em diferentes locais em São Paulo e no Rio de Janeiro. Através de todos os relatos é possível traçar um amplo painel sobre os diferentes motivos que levam as mulheres a essa decisão, bem como as questões morais e religiosas envolvidas.
O filme acompanha, por exemplo, o caso de uma menina de 13 anos desde seu depoimento à assistente social relatando o abuso sexual que sofrera até a interrupção, detalhando toda a espera no quarto do hospital ao lado de sua mãe, bem como os procedimentos médicos efetuados. Uma outra mulher está no sexto mês de gestação e ouvimos o diagnóstico dado pelo médico: o bebê tem problemas seríssimos de má formação que não lhe dão chance de sobrevida após o nascimento.
A maioria dos abortos no país acontece, no entanto, na clandestinidade: em casa, em clínicas ou com o auxílio de uma “mãe de anjo”. Três depoentes no documentário contam experiências em que recorreram a drogas abortivas ou ao auxílio dessa “profissional”.
Em meio aos casos concretos de mulheres que vivem esta situação limite, o filme “O Aborto dos Outros” revela, segundo Dados do Ministério da Saúde em 2007, que 70 mil mulheres morrem por ano no mundo em função de aborto inseguro e que no Brasil, uma em cada quatro gestações é interrompida voluntariamente, totalizando mais de um milhão de abortos clandestinos por ano.
A punitiva lei brasileira não impede na prática que mulheres realizem o aborto. É justamente esse o ponto nevrálgico da discussão: mulheres que decidam interromper sua gestação continuarão a fazê-lo, nas condições que encontrarem, com ou sem atendimento adequado.
A dramática conseqüência da criminalização são os efeitos perversos para as mulheres, como o alto índice de mortalidade materna ou as graves seqüelas de procedimentos clandestinos, indicativos alarmantes de um dos maiores problemas de nosso país na área da saúde pública.
O Aborto dos Outros estreou no 13º Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade (2008), na mostra competitiva, em que levou a Menção Honrosa “pela corajosa abordagem, pela pertinência temática e sensibilidade narrativa”.
O documentário também foi selecionado para a mostra paralela do 36º Festival de Gramado (2008).
Aborto no mundo
Segundo a Organização Mundial de Saúde, anualmente, 75 milhões de gestações são indesejadas, o que indica que 35 a 50 milhões de abortos são induzidos; destes 20 milhões são abortos inseguros. Esses abortamentos causam graves complicações reprodutivas a milhares de mulheres, visto que são feitos em condições precárias sem o mínimo de suporte técnico de qualidade. Deste modo, 70 a 80 mil mulheres morrem por complicações devido ao aborto inseguro, sendo que 95% destes ocorrem em países em desenvolvimento (World Health Organization. Unsafe Abortion, 1998). Isto é, 13% das mortes maternas se devem ao aborto inseguro. O número aumenta na América Latina, onde o abortamento inseguro é o determinante de 21% das mortes maternas (World Health Organization. Unsafe Abortion, 1998).
Aborto no Brasil
No Brasil, o aborto inseguro é responsável por 250 mil internações no Sistema Único de Saúde para tratamento de suas complicações, sendo a curetagem pós-abortamento o segundo procedimento obstétrico mais realizado no serviço de saúde pública. O que quer dizer que a mortalidade materna por aborto inseguro é bastante significante no Brasil. Em algumas cidades, o aborto inseguro está entre as cinco primeiras causas de mortes maternas, sendo que em Salvador, desde o início da década de 90, é a primeira causa de mortalidade materna anualmente (The Alan Guttmacher Institute, 1994 / Ministério da Saúde).
Vigora ainda o Decreto-Lei de número 2.848, de dezembro de 1940, segundo o qual apenas em duas situações o abortamento é permitido: em casos de estupro ou quando há risco de vida para a gestante. Em 1991, foi elaborado por Eduardo Jorge e Sandra Starling, então deputados, um novo projeto de lei (de número 1.135), que descriminaliza o aborto. Se fosse aprovado, ele retiraria do Código Penal justamente o artigo que se refere à interrupção voluntária da gravidez, que prevê pena de um a três anos de prisão para a mulher que o fizer.
Tal projeto, no entanto, tramitou por praticamente 18 anos e somente em 2008 foi votado. Em 07 de maio, a Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara o rejeitou, por unanimidade, com o voto de 33 deputados. Dois meses depois, foi a vez da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados votar – e também de maneira contrária ao projeto de 1991. Nessa segunda votação foram 57 votos a favor da manutenção do artigo no Código Penal e apenas 4 contrários. Com essas duas sessões já realizadas, a possibilidade da proposta ser arquivada é bastante alta. A não ser que haja recursos à decisão num prazo de cinco sessões ordinárias.
Fonte:Agência Envolverde